segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Editora Paulus publica artigo de Libânio que faz apologia ao ateísmo

O caminho 'sem Deus'


Eu me recordo da primeira vez que ouvi a palavra “retórica”. Eu tinha por volta de quinze anos e estava lendo Dom Casmurro. Em um certo momento do livro, Bentinho vai descrever os “olhos de ressaca” de Capitu (aliás, a expressão evocava-me então olhos inchados e olheiras profundas de quem passou a noite tomando um porre) e faz então a célebre súplica: «Retórica dos namorados! Dai-me uma compreensão exata do que foram para mim aqueles olhos de Capitu!». A despeito das aspas, cito de memória: não fui procurar no livro a citação literal. Mas o vocativo inicial é exatamente este, tenho certeza. E eu não fazia a menor idéia do que era retórica…
Fiz a digressão porque me lembrei hoje da passagem machadiana, na qual fica evidente a reconhecida incapacidade do protagonista de descrever a contento os olhos da mulher amada – razão pela qual ele pede auxílio à “Retórica dos Namorados”, assim mesmo, personificada. E me lembrei da passagem porque li a mais recente coluna d’O Domingo [esta, que vai ao lado] e me senti um pouco como Bentinho: ele, incapaz de descrever os olhos de Capitu e, eu, incapaz de expressar o propósito do artigo do pe. Libanio no semanário católico. E senti um ímpeto de gritar: “Retórica dos excomungados! Dai-me uma compreensão do que foram aquelas palavras do pe. Libanio!”. Porque, se é talvez necessário enamorar-se para entender o fascínio que provocam os olhos de ressaca de Capitu, talvez seja também necessário colocar-se sob a ótica de quem não tem Fé para que façam algum sentido as palavras do jesuíta na coluna de ontem d’O Domingo.
Porque, sinceramente, o texto me parece mal escrito, sem coesão, sem encadeamento de idéias, sem deixar claro a quê ele se propõe. Começa o jesuíta invocando uma outra “via sem Deus” [?], que “não apela à ciência, mas à mera sabedoria e experiência humanas, feitas à margem de toda tradição religiosa e de fé”. O conceito vem assim mesmo, jogado, sem dizer se isso é uma constatação, um programa a ser buscado, a expressão da própria opinião ou o que seja. Além disso, o conceito é totalmente nonsense simplesmente porque a “sabedoria e experiência humanas” estão necessariamente imbuídas de “tradição religiosa e de fé”, na absoluta totalidade dos povos e das culturas existentes. Simplesmente não existe sabedoria ou experiência humanas que tenham sido construídas “à margem” (!) de “toda” (!!) “tradição religiosa ou de fé”. Por completa impossibilidade de existência do objeto descrito no início do texto, o parágrafo não tem o menor sentido prático.
Também é impossível saber onde se encaixam, nisto, as referências ao Carpe Diem. Não fica claro por qual misterioso motivo a tal “via sem Deus” deveria se preocupar somente com o presente. Aliás, colocando as coisas sob a correta perspectiva católica, o verdadeiro carpe diem encontra-se exatamente no chamado à conversão do Evangelho: é hoje o dia que tu tens para te converteres, é hoje o tempo favorável, e portanto tu deves hoje buscar o Senhor, enquanto Ele está perto. O verdadeiro Carpe Diem se encontra na clássima imagem do santo esmagando um corvo – cras, cras – enquanto ostenta uma cruz na qual está escrito hodie. Acusar o Cristianismo de ser uma religião “do passado” é não fazer a menor idéia do que seja o Cristianismo, é não ter nunca lido uma página sequer do Evangelho, é nunca ter passado cinco minutos observando uma imagem de Santo Expedito.
Seguem-se as loas a um presente vislumbrado de uma maneira hedonista: “então nos resta somente o presente conhecido, no qual escolhemos o que nos traz felicidade”. E, embora esta visão de mundo seja contraposta a um vislumbre de absoluto – “Existem valores que não inventamos. Estão aí diante de nós: amor, beleza, justiça, convivência” -, em momento algum ela é rechaçada com a veemência que deve. Muito pelo contrário. O que o pe. Libânio parece querer fazer é sacramentar esta opção pela vida apenas no tempo presente, é legitimar o “caminho da sabedoria humana sem Deus” (título do artigo). Retórica dos desesperados, dai-me compreender os insondáveis propósitos do velho jesuíta! A conclusão do artigo parece absurda para estar presente em um semanário católico, mas está lá com todas as letras. Transcrevo:
Não se trata de nenhum “presentismo” desregrado, nem de balbúrdia existencial, mas de honestidade humana que nos traz a felicidade. Não faz falta nenhuma transcendência além da história. A civilização ocidental, ao longo do século, está a preparar tal caminho. Cabe-nos trilhá-lo.
E c’est fini. No final, não dá para saber se tal “caminho” foi inventado pelo pe. Libânio ou se ele o está tomando emprestado de outros, e – neste último caso – em momento algum aparece o menor juízo de valor do jesuíta sobre uma filosofia de vida tão estranha à Doutrina Católica. Por completa ausência de aspas indicando citações ou de qualquer exposição textual de refutações às idéias apresentadas ao longo do texto, não resta ao leitor da coluna senão considerar que, para o pe. Libanio, a transcendencia não faz mesmo falta nenhuma, que esta é a marcha inexorável da civilização diante da qual a única atitude que podemos ter é… a de acompanhá-la. Retórica dos “civilizados”, dai-me captar a lógica de certos colunistas “católicos”! Porque certos artigos estão para muito além de minha vã compreensão.
Como pode um jesuíta – logo um jesuíta! – conclamar os católicos a trilharem os caminhos ateus de uma civilização esquecida do Altíssimo? Como pode um filho de Santo Inácio capitular diante dos tolos do mundo moderno que dizem que Deus não existe e – pior ainda! – pretender que esta sua atitude covarde seja a única coisa que resta a ser feita? Como podem idéias desta jaez serem veiculadas impunemente em um folheto de ampla circulação de uma conhecida editora católica?
Parece que a Editora Paulus não está satisfeita. Mas ela não está satisfeita – pasmem! – é com os protestos descontentes dos católicos que, perplexos, ousaram cobrar explicações sobre este artigo ateu d’O Domingo. No Twitter, um amigo meu (o @tht) foi bloqueado pela @EditoraPaulus por conta das denúncias inconvenientes que teve a pachorra de fazer:
A Editora Paulus, responsável pel’O Domingo, carrega o nome do grande Apóstolo São Paulo. Exatamente o Apóstolo dos Gentios, o guerreiro da Fé responsável por levar a mensagem do Evangelho aos povos pagãos! Nos dias de hoje, São Paulo parece estar muito mal representado. O Apóstolo arrastou os povos pagãos para os pés de Nosso Senhor. É revoltante ver que, no século XXI, a Editora Paulus parece querer convencer os católicos a se trilharem os caminhos da “civilização” para a qual não faz falta nenhuma Transcendência.

fonte: Deus lo vult

domingo, 11 de setembro de 2011

Progressistas esperneiam. “Liturgia: rumo a um Jurassic Park do rito?”


Grande parte da estrutura eclesial oficial – diante de documentos “nus”, ou, em outras palavras, discutíveis do ponto de vista dos fundamentos jurídicos, da pastoral e da praticabilidade real, como o Motu Proprio Summorum Pontficum e a Instrução Universae Ecclesiae – apenas lança louvores exagerados às novas vestes.

A análise é de Andrea Grillo, professor de teologia sacramental na Faculdade de Teologia do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo para o sítio Viandanti, 01-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Na bela fábula de Chistian Andersen, A Roupa Nova do Rei, a verdade só pode srugir quando uma criança declara inocentemente: “O rei está nu”. Os muitos condicionamentos que, na fábula, impedem que os adultos “não vejam” as vestes inexistentes do rei, estão ligados ao temor de se expor, ao medo de parecer inconveniente e ao terror de não se demonstrar à altura da própria tarefa. Isso é Andersen.

A parrésia censurada

Mas o que está fazendo, hoje, grande parte da estrutura eclesial oficial diante de documentos “nus”, em outras palavras, discutíveis do ponto de vista dos fundamentos jurídicos, da pastoral e da praticabilidade real, como o Motu Proprio Summorum Pontificum e a Instrução Universae Ecclesiae?
Silêncio, elogios, palavras de ocasião e desvios genéricos são quase as únicas reações consideradas possíveis. Se um bispo se atreve a dizer a verdade ou um teólogo a pensar sobre os problemas objetivos, logo se dispara uma espécie de censura preventiva, que acusa o sujeito de “ser contra o rei”. Toda “parrésia” [dizer confiadamente coisas que parecem arriscadas] é banida quando não explicitamente censurada. E parece quase obrigatório repetir acriticamente uma série de afirmações que aparecem como profundamente dissonantes com relação à tradição litúrgica e teológica dos últimos 50 anos.

Nem detalhe, nem enfeite

Não pode haver dúvida de que a Reforma Litúrgica não queria ser um detalhe marginal ou um novo enfeite para acrescentar à história da Igreja um particular não estritamente necessário. Vice-versa, qualquer um que leia os documentos dos últimos 50 anos não custa a perceber as razões de urgência e de estratégia que correspondem à necessidade de mudar profundamente os ritos da Igreja, para assegurar à tradição a possibilidade de ainda comunicar.
Afirmar que a Reforma Litúrgica não revogou o rito de Pio V significa, ao mesmo tempo, alterar a relação com a tradição dos últimos 50 anos e introduzir na história da Igreja uma forma de “compreensão monumental” que corre o risco da completa paralisia do presente, quase por um “excesso de passado”. Para uma tal operação, era necessário empregar um suporte teórico robusto. Intuía-se, evidentemente, a fragilidade da solução proposta. E se sabia que tanto Paulo VI queria substituir o Vetus Ordo Missae pelo Novo, quanto João XXIII havia pensado o rito de 1962 como provisório, à espera do Concílio Vaticano II e da consequente Reforma Litúrgica.

O engessamento do rito

Supõe-se que é possível identificar a continuidade do rito romano com a contemporaneidade de diversas formas do mesmo rito, isto é, o rito de Pio V e o missal da Reforma conciliar; uma teoria muito arriscada e praticamente muito perigosa. O risco teórico consiste em separar o o rito romano do seu concreto devir, hipostasiando fases diferentes da história, tornando-as todas indiferentemente contemporâneas.
No plano prático, essa solução de fato supera qualquer “certeza do rito”, introduzindo um fator de grandes conflitualidade nas comunidades eclesiais individuais e impedindo aos bispos todo verdadeiro discernimento.
A lógica dos documentos – diria quase a sua gramática – tende a desmentir o seu conteúdo. De fato, se é verdade que no plano do conteúdo é reafirmado o primado do rito ordinário (de Paulo VI) com relação ao rito extraordinário (de Pio V), os documentos estão escritos nas categorias de Pio V e não nas de Paulo VI: utilizam, de fato, uma hierarquia de prioridades invertida entre “missa sem povo” e “missa com povo” que nenhum documento usa mais desse modo, de 1970 em diante.

Uma oportunidade perdida

Mas não é o suficiente. Como na fábula de Andersen, em torno do rei não estão apenas os alfaiates enganadores, mas muitos outros sujeitos que, para não parecerem estúpidos, lançam-se em louvores exagerados às novas vestes: há quem diga que o Vetus Ordo é o ideal para o diálogo ecumênico, mas, enquanto diz esse exagero, sente um forte calor avermelhar-lhe o rosto e não entende por quê; há quem diga que finalmente esses documentos atestam um verdadeiro estilo católico, do qual se esperava há muito tempo a manifestação, ou melhor, a fenomenologia, que, obviamente, a evidência da fé e a justiça de ágape já conheciam há muito tempo.
Uma boa oportunidade para se dar conta da realidade que havia: um verdadeiro balanço era concebível no final de 2010, quando todos os bispos informaram ao Vaticano o fruto dessa experiência trienal de aplicação do Motu Proprio. Foi uma oportunidade perdida, seja por uma forte resistência dos bispos, seja pela interessada desatenção de um setor radical da Cúria Romana. Brotou daí um novo documento (a Instrução Universae Ecclesiae), que é ainda pior do que o Motu Proprio. É evidente, porém, que o seu arcabouço teórico é ainda mais frágil e cheio de equívocos. Ele pode ser facilmente mal interpretado, quase como se fosse uma espécie de “revanche contra o Concílio”.

O rei está nu

Diante dessas tentativas de mistificação da tradição litúrgica, é preciso encontrar a força de dizer: “O rei está nu”. Dizer isso – com toda a sua dose de crítica aos documentos oficiais costurados por alfaiates ilusionistas – é uma possibilidade para todos os cristãos, mas é uma tarefa para aquelas crianças que, na Igreja, são chamados de “teólogos”. Infelizmente, os teólogos muitas vezes se sentem e se revelam muito adultos e têm os olhos logo prontos para ver (ou até para admirar e magnificar) vestes que não existem. Enquanto eles, por ministério, são “obrigados” a permanecer crianças de olhos vivos, para dizer a verdade, sem todas as mediações que vinculam outros ministérios a lógicas necessariamente mais complexas. A Igreja precisa dessas crianças-teólogos, para cultivar uma experiência de comunhão diferente daquela dos quartéis ou das sociedades anônimas, onde a crítica ao superior é logo entendida como prova de heterodoxia.
Enquanto a Igreja não for diferente dessas organizações, a voz das crianças será salutar. Quem poderá ter interesse em calá-las? Ou talvez se pensará nas crianças apenas para construir um enorme “Jurassic Park” ritual, onde todos – tratados como crianças – poderão “se sentir em casa” ao preço de perder todo sentido da história e da realidade?