domingo, 11 de setembro de 2011

Progressistas esperneiam. “Liturgia: rumo a um Jurassic Park do rito?”


Grande parte da estrutura eclesial oficial – diante de documentos “nus”, ou, em outras palavras, discutíveis do ponto de vista dos fundamentos jurídicos, da pastoral e da praticabilidade real, como o Motu Proprio Summorum Pontficum e a Instrução Universae Ecclesiae – apenas lança louvores exagerados às novas vestes.

A análise é de Andrea Grillo, professor de teologia sacramental na Faculdade de Teologia do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo para o sítio Viandanti, 01-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Na bela fábula de Chistian Andersen, A Roupa Nova do Rei, a verdade só pode srugir quando uma criança declara inocentemente: “O rei está nu”. Os muitos condicionamentos que, na fábula, impedem que os adultos “não vejam” as vestes inexistentes do rei, estão ligados ao temor de se expor, ao medo de parecer inconveniente e ao terror de não se demonstrar à altura da própria tarefa. Isso é Andersen.

A parrésia censurada

Mas o que está fazendo, hoje, grande parte da estrutura eclesial oficial diante de documentos “nus”, em outras palavras, discutíveis do ponto de vista dos fundamentos jurídicos, da pastoral e da praticabilidade real, como o Motu Proprio Summorum Pontificum e a Instrução Universae Ecclesiae?
Silêncio, elogios, palavras de ocasião e desvios genéricos são quase as únicas reações consideradas possíveis. Se um bispo se atreve a dizer a verdade ou um teólogo a pensar sobre os problemas objetivos, logo se dispara uma espécie de censura preventiva, que acusa o sujeito de “ser contra o rei”. Toda “parrésia” [dizer confiadamente coisas que parecem arriscadas] é banida quando não explicitamente censurada. E parece quase obrigatório repetir acriticamente uma série de afirmações que aparecem como profundamente dissonantes com relação à tradição litúrgica e teológica dos últimos 50 anos.

Nem detalhe, nem enfeite

Não pode haver dúvida de que a Reforma Litúrgica não queria ser um detalhe marginal ou um novo enfeite para acrescentar à história da Igreja um particular não estritamente necessário. Vice-versa, qualquer um que leia os documentos dos últimos 50 anos não custa a perceber as razões de urgência e de estratégia que correspondem à necessidade de mudar profundamente os ritos da Igreja, para assegurar à tradição a possibilidade de ainda comunicar.
Afirmar que a Reforma Litúrgica não revogou o rito de Pio V significa, ao mesmo tempo, alterar a relação com a tradição dos últimos 50 anos e introduzir na história da Igreja uma forma de “compreensão monumental” que corre o risco da completa paralisia do presente, quase por um “excesso de passado”. Para uma tal operação, era necessário empregar um suporte teórico robusto. Intuía-se, evidentemente, a fragilidade da solução proposta. E se sabia que tanto Paulo VI queria substituir o Vetus Ordo Missae pelo Novo, quanto João XXIII havia pensado o rito de 1962 como provisório, à espera do Concílio Vaticano II e da consequente Reforma Litúrgica.

O engessamento do rito

Supõe-se que é possível identificar a continuidade do rito romano com a contemporaneidade de diversas formas do mesmo rito, isto é, o rito de Pio V e o missal da Reforma conciliar; uma teoria muito arriscada e praticamente muito perigosa. O risco teórico consiste em separar o o rito romano do seu concreto devir, hipostasiando fases diferentes da história, tornando-as todas indiferentemente contemporâneas.
No plano prático, essa solução de fato supera qualquer “certeza do rito”, introduzindo um fator de grandes conflitualidade nas comunidades eclesiais individuais e impedindo aos bispos todo verdadeiro discernimento.
A lógica dos documentos – diria quase a sua gramática – tende a desmentir o seu conteúdo. De fato, se é verdade que no plano do conteúdo é reafirmado o primado do rito ordinário (de Paulo VI) com relação ao rito extraordinário (de Pio V), os documentos estão escritos nas categorias de Pio V e não nas de Paulo VI: utilizam, de fato, uma hierarquia de prioridades invertida entre “missa sem povo” e “missa com povo” que nenhum documento usa mais desse modo, de 1970 em diante.

Uma oportunidade perdida

Mas não é o suficiente. Como na fábula de Andersen, em torno do rei não estão apenas os alfaiates enganadores, mas muitos outros sujeitos que, para não parecerem estúpidos, lançam-se em louvores exagerados às novas vestes: há quem diga que o Vetus Ordo é o ideal para o diálogo ecumênico, mas, enquanto diz esse exagero, sente um forte calor avermelhar-lhe o rosto e não entende por quê; há quem diga que finalmente esses documentos atestam um verdadeiro estilo católico, do qual se esperava há muito tempo a manifestação, ou melhor, a fenomenologia, que, obviamente, a evidência da fé e a justiça de ágape já conheciam há muito tempo.
Uma boa oportunidade para se dar conta da realidade que havia: um verdadeiro balanço era concebível no final de 2010, quando todos os bispos informaram ao Vaticano o fruto dessa experiência trienal de aplicação do Motu Proprio. Foi uma oportunidade perdida, seja por uma forte resistência dos bispos, seja pela interessada desatenção de um setor radical da Cúria Romana. Brotou daí um novo documento (a Instrução Universae Ecclesiae), que é ainda pior do que o Motu Proprio. É evidente, porém, que o seu arcabouço teórico é ainda mais frágil e cheio de equívocos. Ele pode ser facilmente mal interpretado, quase como se fosse uma espécie de “revanche contra o Concílio”.

O rei está nu

Diante dessas tentativas de mistificação da tradição litúrgica, é preciso encontrar a força de dizer: “O rei está nu”. Dizer isso – com toda a sua dose de crítica aos documentos oficiais costurados por alfaiates ilusionistas – é uma possibilidade para todos os cristãos, mas é uma tarefa para aquelas crianças que, na Igreja, são chamados de “teólogos”. Infelizmente, os teólogos muitas vezes se sentem e se revelam muito adultos e têm os olhos logo prontos para ver (ou até para admirar e magnificar) vestes que não existem. Enquanto eles, por ministério, são “obrigados” a permanecer crianças de olhos vivos, para dizer a verdade, sem todas as mediações que vinculam outros ministérios a lógicas necessariamente mais complexas. A Igreja precisa dessas crianças-teólogos, para cultivar uma experiência de comunhão diferente daquela dos quartéis ou das sociedades anônimas, onde a crítica ao superior é logo entendida como prova de heterodoxia.
Enquanto a Igreja não for diferente dessas organizações, a voz das crianças será salutar. Quem poderá ter interesse em calá-las? Ou talvez se pensará nas crianças apenas para construir um enorme “Jurassic Park” ritual, onde todos – tratados como crianças – poderão “se sentir em casa” ao preço de perder todo sentido da história e da realidade?

Nenhum comentário:

Postar um comentário